Acordei
com gritos em meus ouvidos. Levantei e coloquei meus cachorros para
fora. O ar estava frio e o rádio ainda tocava desde a noite passada.
A TV ligada transmitia a mensagem do homem que se diz servo de Deus.
Desliguei. Repousei novamente. A música é jazz, a voz é grave, e
tudo que me toca são as aplicações sonoras que a voz humana pode
encontrar com a base instrumental e como aquilo tudo me envolvia de
um modo que eu não sabia explicar, mesmo não entendendo o que
poderia me dizer aquele idioma. Eu sempre converso comigo, de vez
em quando acordo porque acho que estou conversando com outra pessoa.
Alguns gritos me sufocam e me acordam em muitas noites.
De
vez em quando eu entro em lapso, tenho vontade de vomitar e minha
cabeça dói, é difícil levantar, como se eu rolasse de um lado
para o outro e nada pudesse melhorar meu corpo naquele instante, a
não ser esperar passar. Falta-me o equilíbrio. Às vezes é preciso
um cigarro, ou apenas um trago. Sacia a vontade, ou talvez engane a
meu corpo viciado. O som ligado ameniza sempre. Logo me sinto tomada
pela música e as vozes parecem sumir; um descuido ou apenas o
intervalo de uma para outra, logo escuto novamente, logo me atento a
ela, e, em muitas vezes, me sinto mal por dentro, por não me
encontrar em mim, sempre achando que talvez eu não saiba viver de
verdade e que talvez eu seja uma piada simpática e que as pessoas
não podem me dizer o que é real.
Os
cachorros brigam do outro lado da porta, seus latidos e arranhões
incomodam. Dou dois gritos entoando seus nomes e aos poucos o som e
os latidos vão sumindo. Levanto, vou lavar o rosto. Uma enorme
vontade de olhar o que é a minha imagem me faz passar vários
minutos de frente ao espelho, com os braços adormecidos na pia
branca e gelada, aspirando aquele cheiro de banheiro, uma mistura de
flor do campo com pinho. Eu saio com as mãos encobertas de formigas,
que aos poucos vão dando lugar aos dedos que retornam ao seu
movimento natural.
Aumento
um pouco o volume do rádio. Ao lado dos meus cachorros, sento. Dou
um trago, bebo um pouco de leite e volto a deitar. O sono não
chega... Retorno ao espelho e observo os meus olhos, tem gente que
diz que eu vivo falando com eles, sempre quis conversar com os meus,
mas nunca consigo expressar o que eu digo para outras pessoas na
frente do espelho. “Como meus olhos podem falar se apenas um
consegue enxergar? Como eu posso falar com os meus olhos?”
O
céu vai deixando a escuridão e uma cinza fumaça de frio chega,
carregada de uma chuva que permanece por aproximadamente umas duas
horas. O som dos pingos de água era misturado aos desejos que eu
havia planejado quando chegasse aos vinte e sete anos. O estado de
conformidade que meu corpo está enquanto espera a morte. E o que meu
pensamento busca quando pensa no que seria o amanhã em que eu não
poderia estar. Fico a perguntar “quem fumaria aquele cigarro se eu
morresse ainda tragando? Quem colocaria a comida para os meus bichos?
Quem tocaria meu violão para que ele não ficasse calado? Quem
amaria minha família?”
Quando
tento falar de morte com as pessoas, sempre o assunto fica curto e
logo se tangencia para outro diálogo. E muitas perguntas se repetem
diariamente. “Se eu morresse?! Como será que as coisas ficariam,
se eu morresse?”
De
vez em quando eu fico me perguntando se hoje vai ser o último dia da
minha vida. Se estou vivendo intensamente o meu último dia. “Será
que vou morrer hoje? Porque morreria? O que eu fiz até agora para
merecer viver tanto?” Desde criança que eu penso nas
possibilidades de morrer. Suicídio, acidente, doença... Nunca se
sabe o que pode acontecer. Na minha adolescência, quando discutia
com minha mãe, pensava sempre em pular de algum lugar e morrer.
Certa
vez fugi de casa por ter aprontado – acredite, pela primeira vez –
na escola, e estava levando um comunicado para minha mãe ir até lá.
Acho que foi a primeira vez que pensei em morrer, talvez eu tenha
morrido por uns instantes ao procurar meu pai, o que foi em vão. No
final das contas, minha mãe me achou e conversamos, dias depois ela
me falou que meu pai pediu para que eu não o procurasse. Essa foi a
segunda vez que eu morri. Eu acho que na vida nós morremos e
ressuscitamos várias vezes.
Quando
eu nasci fui abençoada por quatro avós de criação que cuidavam da
minha mãe. A morte de cada uma delas me fez perder um pouco da minha
vida, e dessa morte eu não ressuscitarei. Um pedaço da gente sempre
morre quando alguém que amamos nos deixa. Eu também já perdi
outras partes, mas não sei dizer. Apaixonei-me tantas vezes e nessas
paixões morri outras tantas, morria de felicidade, tristeza...
Morria de vontade que tudo fosse para sempre, mas nunca era. Aprendi.
Há
alguns meses eu tenho me sentindo com a morte, do meu lado ela
caminhou, até me fez vê-la novamente, e meus amigos longe dela
ficaram. Os poucos que confiava, nem me procuraram, acho que eles
têm medo da morte. Por isso, me sinto com ela quando eles estão
longe de mim.
A morte sempre vem quando me sinto só, quando os
amigos não são amigos, ou talvez não sejam por um tempo. Tenho
medo de chegar sozinha na morte, mas sei que sempre vamos sozinhos,
nascemos sozinhos e assim morremos. E essa talvez seja a única
independência que temos, a tão sonhada liberdade de ser.
Ninguém
me conhece de verdade, eu acho que nem eu sei quem sou realmente. Ou
talvez todos sejam assim como eu, ora consciente ora ignorante. Não
sei se o que sabem de mim é suficiente, mas também não sei se as
pessoas precisam saber mais do que elas sabem. Eu sei que tenho medo
de não fazer o certo, e mais medo de não saber o que é o
certo.
Tem dias que saio de casa e vejo o olhar dos meus cachorros
a pedir que eu não vá. Às vezes eu acho que não tenho que ir, mas
vou. Deixo-os presos em minha casa, tomando conta. Acho que eles
tomam conta de mim, por isso sempre volto.
Eu
vivo pensando em morrer e tenho medo. Medo de não saber o que há
além. Eu não sei o que me vai acontecer. Não sei! Tem horas que
quero mandar todos se ferrarem, inclusive eu. Já pensei em tantas
coisas para me matar que não saberia contar. Mas nunca o fiz, por
medo.
Talvez o seja o medo que me mantém viva. Tenho medo de
muitas coisas, medo de baratas, medo de não ter a quem amar, medo de
não poder ouvir e mais ainda de não ser ouvida, medo de não poder
embriagar-me, medo de pessoas, medo de mim, medo de ter medo...
MEDO... MEDO... MEDO!
Meu corpo se desconforta e um grito
compassado é dado pelo meu medo. O medo de não saber o que é
AMANHÃ. O que iria me acontecer após isso tudo, se eu morresse
agora? Ou talvez amanhã? Como seria o amanhã depois de amanhã? O
maior medo é não saber quando vai ser o último hoje. Tenho medo.